Na madrugada de 17 de novembro de 2025, um tribunal doméstico em Dhaka condenou à morte a ex-primeira-ministra de Bangladesh, Sheikh Hasina Wazed, por sua responsabilidade direta na repressão violenta de protestos estudantis que deixaram 327 mortos e mais de 1.800 feridos — um dos capítulos mais sombrios da história recente do país. A sentença, proferida pelo Tribunal de Crimes Internacionais de Bangladesh, também atingiu seu ex-ministro do Interior, Asaduzzaman Khan Kamal, e foi baseada em 453 páginas de evidências, incluindo depoimentos de 147 sobreviventes e 89 famílias de vítimas. A decisão, embora emitida por um tribunal nacional, citou explicitamente o Artigo 7 do Estatuto de Roma, o que a torna um marco raro na justiça internacional: um governo local julgando seu próprio líder por crimes contra a humanidade.
Os protestos que abalaram o país
Os tumultos começaram em 12 de fevereiro de 2024, na Universidade de Dhaka, quando estudantes pacíficos exigiam reformas educacionais — mais bolsas, menos corrupção. Mas em 3 de março, o governo respondeu com força letal: a Rapid Action Battalion (RAB) e a Border Guard Bangladesh (BGB) entraram em ação com gás lacrimogêneo, porretes e, depois, balas de verdade. O clima de terror se espalhou para 15 distritos, incluindo Chittagong e Sylhet. Em 18 de julho, na praça Shaheed Minar, em Dhaka, 47 jovens foram abatidos a tiros. Aos olhos do mundo, foi um massacre. Aos olhos do tribunal, foi um plano.
Um tribunal criado para perdoar, agora para punir
Curiosamente, o Tribunal de Crimes Internacionais de Bangladesh foi criado por Hasina em 2010 — originalmente para julgar criminosos da guerra de independência de 1971. Durante seus 15 anos no poder, ele virou arma política: 56 processos, 29 sentenças de morte, quase todas contra oposição. Human Rights Watch já denunciou em 2021 que o tribunal era um "julgamento de propaganda". Agora, ele se voltou contra sua própria criadora. A ironia é quase cruel. O tribunal não apenas condenou Hasina — como também reconheceu que os abusos continuaram sob o governo interino de Muhammad Yunus, o economista Nobel que assumiu em 7 de agosto de 2024.
A fuga e a justiça que a alcançou
Hasina fugiu para a Índia em 4 de agosto de 2024, e desde então vive em Nova Delhi, num apartamento na Motilal Nehru Marg. Ela admitiu em entrevistas que tinha "responsabilidade de liderança", mas culpou "falhas de disciplina entre as forças de segurança". O tribunal não aceitou. Sob o direito internacional, quem manda responde. A sentença foi clara: morte por enforcamento. Mas o tribunal fez algo inesperado: não dissolveu seu partido, o Bangladesh Awami League, fundado em 1949. Em vez disso, confiscou todas as propriedades imóveis de Hasina e Kamal — incluindo sua casa na zona diplomática de Baridhara e a residência de Kamal em Dhanmondi — para criar um fundo de R$1,25 bilhão de taka (cerca de US$11,36 milhões) para indenizar famílias das vítimas.
Repercussões além das fronteiras
A sentença não ficou dentro da sala do tribunal. No dia seguinte, o Board of Control for Cricket in India (BCCI), sediado em Mumbai, anunciou o adiamento da série feminina de críquete entre Índia e Bangladesh, prevista para 3 de dezembro em Dhaka. O secretário Jay Shah disse que a decisão foi tomada por causa da "situação política em evolução". A bola parou — e com ela, uma das poucas pontes de cooperação entre os dois países. O Bangladesh Cricket Board ainda não respondeu. Mas o silêncio também fala.
Três processos pendentes e o futuro incerto
Hasina não está livre — está apenas no começo. Ela responde a mais três processos no mesmo tribunal: um sobre 142 desaparecimentos forçados entre 2021 e 2023, outro sobre 68 execuções extrajudiciais durante greves da oposição em 2022-2023, e um terceiro sobre o massacre de 53 pessoas no evento da Hefazat-e-Islam em 2013. Nenhum desses casos foi julgado ainda. E enquanto ela vive em exílio, o país se despede de uma era. O que vem depois? Ainda não se sabe. Mas o tribunal mostrou algo importante: mesmo os mais poderosos podem ser chamados à conta.
As vozes que não calaram
Human Rights Watch, a ONG que documentou quase todos os crimes mencionados na sentença, afirmou em nota: "Reconhecemos a gravidade das provas, mas nos opomos à pena de morte em qualquer circunstância." É um paradoxo ético que divide o mundo. A justiça exige punição. Mas a civilização exige que a morte não seja a resposta. Enquanto isso, as mães das 327 vítimas esperam. E o tribunal, agora, espera que o mundo olhe.
Frequently Asked Questions
Por que o tribunal usou o Estatuto de Roma se não é um tribunal internacional?
O Tribunal de Crimes Internacionais de Bangladesh é um órgão nacional, mas sua decisão invocou o Artigo 7 do Estatuto de Roma para dar peso jurídico internacional à condenação. Isso não significa que a Corte Penal Internacional (CPI) esteja envolvida — apenas que o tribunal usou o mesmo padrão legal que define crimes contra a humanidade em todo o mundo, reforçando a legitimidade da sentença perante a comunidade internacional.
O que acontece com o partido de Sheikh Hasina, o Awami League?
O tribunal decidiu não dissolver o Bangladesh Awami League, apesar de condenar sua líder. Em vez disso, confiscou bens imóveis da ex-primeira-ministra e de seu ex-ministro do Interior para criar um fundo de indenização às famílias das vítimas. O partido ainda existe, mas perdeu seu principal símbolo e recursos financeiros. A estrutura partidária permanece, mas sua legitimidade política está profundamente abalada.
Por que a Índia não extraditou Sheikh Hasina?
A Índia não tem um tratado de extradição com Bangladesh para crimes políticos, e Hasina reside como refugiada política, não como criminoso comum. Além disso, o governo indiano evita interferir em processos internos de vizinhos, especialmente quando envolvem figuras históricas. A decisão de adiar a série de críquete foi um gesto simbólico — não uma ação diplomática agressiva.
As execuções ainda ocorrem sob o governo interino de Muhammad Yunus?
Sim. O próprio tribunal reconheceu em sua sentença que práticas de violência extrajudicial continuaram mesmo após a saída de Hasina. Embora Yunus seja respeitado internacionalmente, seu governo interino enfrenta pressões internas e falta de estrutura institucional. A impunidade persiste — e isso enfraquece a própria justiça que o tribunal tenta restaurar.
Há chances de Hasina ser executada?
Tecnicamente, sim. Mas na prática, é improvável. Ela está na Índia, e sem extradição, a sentença não pode ser executada. Além disso, pressões internacionais — especialmente da ONU e da União Europeia — podem exigir uma revisão do caso. A morte por enforcamento, mesmo se legal, corre o risco de ser vista como vingança, não justiça.
O que isso significa para a democracia em Bangladesh?
É um momento de ruptura. A condenação de uma ex-líder por crimes contra a humanidade é um sinal de que a impunidade pode ser quebrada — mas também revela o quão frágil é o Estado de direito no país. Se o tribunal for usado novamente para silenciar opositores, o sistema perderá toda credibilidade. A verdadeira mudança não está na sentença, mas no que vem depois: se o povo bangladeshês conseguirá construir instituições que não servem ao poder, mas à justiça.